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Benedito Nunes aos 16 anos, 1946.

Fotógrafo não identificado.

Benedito Nunes,

o pequeno pai do tempo

Nelson Sanjad e Andréa Sanjad

O que ensinei aos estudantes?

Ensinei-lhes a boa arte do cepticismo:

a duvidar de tudo, a tudo interrogar

adequadamente com conhecimento de causa.

Benedito Nunes (2009, p. 26)

Benedito José Vianna da Costa Nunes nasceu em Belém, no dia 21 de novembro de 1929, filho único de Benedito da Costa Nunes e de Maria de Belém Vianna da Costa Nunes. A morte súbita do marido fez com que Maria de Belém, ainda grávida, retornasse à casa da família, na Avenida Gentil Bittencourt, onde Benedito nasceu e foi acolhido por seis dedicadas tias. Uma delas foi sua professora do curso primário, Theodora da Cruz Vianna, carinhosamente chamada de Dodó, que mantinha na própria casa o Colégio Sagrado Coração de Jesus. Benedito lembrava com frequência as aulas de Dodó, ministradas na mesa da sala de jantar, em meio a cadernos de caligrafia e livros. Foi para ela que Benedito transferiu as honras do título de Professor Emérito recebido pela Universidade Federal do Pará (UFPA) em 1998. Benedito também se lembrava dos passeios que fazia com as tias, dos vizinhos, dos amigos, dos personagens que povoavam as ruas da Belém de outrora, das brincadeiras, dos bondes, dos doces, dos livros que lhe caiam às mãos e do quintal – o mágico quintal com sua casa de madeira elevada, palco e cenário da fantasia de criança.

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À direita, em pé, Benedito da Costa Nunes e, sentada, Maria de Belém Vianna da Costa Nunes. À esquerda, em pé, Carlos Alberto Nunes e, sentada, sua esposa Filomena. Em pé, no centro, uma tia não identificada e, sentado, o menino Ulisses, sobrinho de Filomena.

Fotógrafo não identificado.

O restante da formação primária e o ginasial foram feitos no Colégio Moderno, um dos mais tradicionais de Belém, entre 1941 e 1948. Foi quando Benedito conheceu Haroldo Maranhão e Maria Sylvia Ferreira da Silva Nunes, esta, filha do desembargador Cursino Loureiro da Silva, por duas vezes presidente do Tribunal Regional Eleitoral (1945-1946 e 1952-1954), e de Raimunda Ferreira da Silva, professora, que atendia pelo apelido de Mimi. Benedito e Maria Sylvia também cursaram juntos a Faculdade de Direito, entre 1949 e 1952. Tornaram-se companheiros de todas as horas, casando-se no ano de sua formatura. Viveram dois anos na casa dos pais de Maria Sylvia e, em 1954, mudaram-se para a casa recém construída de Angelita Ferreira da Silva, cunhada mais velha de Benedito, a Dadá, como os amigos a chamavam, primeira mulher a se formar em Engenharia no Pará, professora universitária, ligada ao movimento teatral e artístico da cidade. Nessa casa, localizada na Travessa da Estrela, com traços modernistas, incluindo um belo painel de azulejos na fachada – desenhado por Angelita e executado por Rui Meira, os três conviveram por décadas, até o falecimento de Angelita, em 1996, constituindo grande biblioteca e reunindo com frequência os amigos para rodadas de conversa, leitura, música, cinema e refinada mesa.

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Casamento de Maria Sylvia e Benedito Nunes em 10 de dezembro de 1952.

Foto: Studio Oliveira.

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Benedito Nunes com três de suas tias: da esquerda para a direita, Ana, Theodora (Dodó) e Joana,

durante o Natal de 1993.

Foto: Andréa Sanjad.

Benedito definia-se, essencialmente, como professor (apesar de ter tido outras experiências profissionais, como as do escritório de advocacia de José Tomás Maroja, da Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia e do Tribunal de Contas do Estado do Pará). No mesmo ano de sua formatura, fez o Exame de Suficiência aplicado pelo Ministério da Educação, para o ensino de Filosofia no curso médio. Começou a lecionar em 1949, no Colégio Moderno, e depois também nos colégios Marista Nossa Senhora de Nazaré, Gentil Bittencourt, Santa Rosa e Paes de Carvalho, onde ministrou as disciplinas Filosofia, História Geral e História do Brasil. Na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Pará, criada em 1955, lecionou História da Filosofia e Ética nos cursos de Pedagogia, Ciências Sociais, História e Biblioteconomia. Em 1961, deixou o ensino secundário e foi contratado pela UFPA, criada quatro anos antes. Foi efetivado em 1964 e, dois anos depois, nomeado Professor Titular, ministrando as disciplinas Introdução à Filosofia, História da Filosofia e Ética. Entre 1962 e 1967, coordenou o Serviço de Teatro, que criou juntamente com Maria Sylvia.

Benedito Nunes (à direita, no fundo) entre os professores da Faculdade de Filosofia,

Ciências e Letras do Pará, 1963.

Fotógrafo não identificado.

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O golpe civil-militar de 1964 – “o grande trauma de nossa geração” (Nunes, 2009, p. 21) – e o posterior endurecimento do regime de exceção mudaram as perspectivas do casal Nunes. O clima de desconfiança, o constrangimento e o abatimento substituíram o otimismo dos anos anteriores, quando Benedito e Maria Sylvia lideraram um intenso e bem sucedido movimento teatral. A casa de Angelita e dos Nunes era o centro onde os espetáculos eram concebidos, produzidos e ensaiados. Talvez por esse motivo, por duas vezes, os militares tenham decidido fazer buscas na residência, o que só não ocorreu porque, em ambos os momentos, erraram de endereço (segundo Benedito, seu nome fora envolvido em um Inquérito Policial Militar por “certo coronel”). Em uma das vezes, os militares foram parar na casa do vizinho, que prontamente se identificou como sendo Benedito, poupando-lhes o estorvo da visita. As graves notícias que circulavam e o clima de delação incentivado nas universidades contribuíram para que os Nunes deixassem o Brasil, em 1967, rumo à França. Ali, enquanto Maria Sylvia frequentava os cursos livres do Collège de France, Benedito fazia pós-graduação (Troisième cycle universitaire) no Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Sorbonne, sob a orientação de Leon Bourdon. Também teve a oportunidade de fazer os cursos de Paul Ricoeur e Maurice Merleau-Ponty, e de dar aulas de Literatura Brasileira na Universidade de Haute Bretagne, em Rennes, onde proferiu curso sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto. Ambos, Benedito e Maria Sylvia, foram testemunhas do ambiente cultural parisiense e dos conflitos estudantis de 1968. Contudo, por mais ricos e estimulantes que esses anos tenham sido, não foram suficientes para manter os Nunes longe de casa. Em 1969, Benedito deixou inconclusa uma tese de doutorado e retornou com a esposa para Belém.

Novamente no magistério, Benedito dedicou-se com afinco a uma série de seminários e cursos de aperfeiçoamento promovidos pela UFPA para graduados e professores. Foi aprovado em exame de Livre Docência aplicado pelo Ministério da Educação. Em 1975, apresentou o projeto e a exposição de motivos para a criação do curso de Filosofia, tornando-se, no ano seguinte, seu primeiro coordenador e presidente do colegiado. Colaborou com diversas unidades da UFPA, em cursos de treinamento, graduação, aperfeiçoamento, especialização, mestrado e doutorado. Após sua aposentadoria, em 1992, continuou dando aulas no curso de Mestrado em Letras, lecionando a disciplina Teoria da Crítica.

Benedito também foi professor em outras instituições. No Brasil, ministrou dois cursos na Universidade Estadual de Campinas, em 1977 e 1979; um curso na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1982; um na Universidade de Brasília, em 1986; um na Universidade Federal da Paraíba, em 1988; três cursos na Escola Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, em 1992, 1993 e 1994; e um curso na Universidade Federal do Ceará, em 1993. No exterior, além do curso ministrado em Rennes em 1968-1969, Benedito esteve na Universidade do Texas em Austin, como Edward L. Tinker Visiting Professor, em 1980; novamente na Universidade de Haute Bretagne, em 1983-1984; novamente na Universidade do Texas em Austin, em 1989; na Universidade Vanderbilt, em Nashville, Estados Unidos, em 1990; e na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 2002.

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Benedito Nunes em Nashville,

Estados Unidos, em junho de 1990.

Foto: Maria Sylvia Nunes.

Benedito e Maria Sylvia Nunes em Berkeley,

Estados Unidos, em 2002.

Foto: Marton Maués.

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Mais recentemente, entre 2004 e 2010, retornou com regularidade ao magistério, ministrando cursos abertos e fazendo palestras no Centro de Cultura e Formação Cristã (CCFC), da Arquidiocese de Belém, a convite do padre Fabrizio Meroni. Em um dos cursos, memorável como reconstrução do pensamento ocidental (e com algumas incursões pelo oriente), percorreu toda a história da filosofia, dos pré-socráticos aos contemporâneos, exibindo livros e imagens, disposto a responder muitas perguntas. Durante um ano, uma vez por mês, sempre aos domingos, das oito ao meio dia, uma audiência de mais de 500 estudantes, professores e seminaristas lotavam o auditório do CCFC – localizado a mais de dez quilômetros do centro da cidade, na BR 316, muito mal servida de transporte coletivo. Brincávamos com o professor pop, que “dos padres” (como dizia) pedia apenas, no intervalo das aulas, um bom café da manhã, com tapioquinha, pão francês e biscoitos.

Benedito foi modesto ao afirmar que aprendeu a ensinar “a duras penas – a ensinar e a ensinar-me” (Nunes, 2009, p. 19). Ao se reconhecer autodidata, qualidade que se pode considerar na base de sua liberdade de pensamento, Benedito revelava sua invulgar dedicação à leitura e ao estudo. O filósofo nunca se filiou a escolas e modismos, nunca se considerou um especialista, não frequentava academias (embora tivesse sido convidado para a Academia Brasileira de Filosofia, em 1989) e nem partidos políticos ou igrejas. Não possuía discípulos, no sentido estrito do termo, isto é, seguidores, continuadores ou sectários, o que seria incoerente com o ceticismo que professava. Benedito orgulhava-se de ser um livre pensador, capaz de transitar pela história das ideias com desenvoltura, fazendo perguntas e buscando relações no tempo e no espaço. Seus méritos foram conquistados por esforço próprio, em sua própria biblioteca, nutrida semanalmente com as novidades editoriais. Sua trajetória intelectual foi construída a partir de indagações originais direcionadas à literatura e à filosofia.

Benedito compartilhou seu conhecimento e soube selecionar o melhor do conhecimento alheio. Por diversas vezes, identificou os autores que o influenciaram no desenvolvimento de um método de análise literária, como Martin Heidegger. Declarou suas predileções literárias e poéticas, como Leon Tolstói, Jorge Luis Borges e Carlos Drummond de Andrade (cujas obras deixava separadas em seu gabinete de trabalho, em uma estante sobre a mesa, sempre à vista dos olhos e ao alcance das mãos). Foi generoso com seus alunos, e foram tantos. Para alguns, talvez os mais interessados ou insistentes, franqueava a biblioteca e se dedicava um pouco mais, orientando trabalhos ou simplesmente conversando. O mesmo acontecia com os amigos, sobretudo os mais novos, que comungavam do prazer pela leitura ou do interesse pela filosofia, pela história, pela arte e pela ciência. Benedito não se incomodava em ser tratado como o manancial, a fonte segura e fértil de informação, semeador e crítico ao mesmo tempo. Estava sempre aberto, pronto a ajudar (desde que depois de sua sesta).

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Benedito Nunes em seu gabinete de trabalho, 2007. Foto: Paula Sampaio.

Detalhe do gabinete, 2013.
Foto: Elaynia Ono.

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Em complemento às atividades de professor, Benedito lia e escrevia. Sua forma de raciocinar era quase indissociável da palavra escrita. Aulas e mesmo cursos inteiros eram concebidos primeiro no papel. Benedito os preparava com o auxílio de fichas de leitura, programas minuciosamente elaborados, cópias manuscritas de trechos de livros, traduções, notas e diários. Esse conjunto fragmentário e disperso em variados suportes frequentemente era transformado em texto, orgânico, coerente, que acabava vindo à luz em livros, revistas e jornais.

Benedito começou nessa lida desde cedo, ainda menino. Dodó costumava mostrar com orgulho, aos que visitavam sua casa, o caderno de poemas escritos por Benedito, quando ainda era seu aluno, tão bem guardado em uma caixa de papel. No Colégio Moderno, seguiu publicando pequenos textos no jornal do grêmio estudantil, que chegou a presidir. Ainda bem jovem, tentou a poesia e a ficção, mas desistiu logo depois dos primeiros acordes, e apesar do estímulo do amigo Mario Faustino. Suas primeiras críticas e ensaios saíram na imprensa: a partir de 1956, inicia-se longa lista de artigos, principalmente, na “Folha do Norte”, em “A Província do Pará”, no “Jornal do Brasil”, em “O Estado de São Paulo” e em “O Estado de Minas”, atividade literária que permaneceu intensa até 1973. Em dois desses jornais, manteve por bom tempo colunas fixas: o “Rodapé da Crítica” (em “A Província...”) e as “Crônicas de Belém” (no Estadão).

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O caderno de poemas infantis de Benedito Nunes, conservado por sua tia e primeira professora, Theodora da Cruz Vianna (Dodó), e o primeiro texto publicado na coluna "Confissões do Solitário", que Benedito manteve no jornal Folha do Norte em 1946 e 1947.

Benedito também enveredou pelas atividades editoriais. Na década de 1950, criou com amigos duas revistas de estudos literários e divulgação cultural, a “Norte” e a “Encontro”, que não passaram dos primeiros números por falta de financiamento. Foi membro do conselho consultivo ou editorial de muitos periódicos brasileiros e estrangeiros, além de referee frequentemente requisitado. Escreveu apresentações, introduções, resenhas. Organizou antologias e edições críticas de vários escritores, como Raimundo de Farias Brito, Mario Faustino, Clarice Lispector, Haroldo Maranhão, Max Martins, Dalcídio Jurandir e Francisco Paulo Mendes. Coordenou as várias edições dos "Diálogos" de Platão, traduzidos por seu tio, Carlos Alberto Nunes, publicadas pela UFPA desde a década de 1970.

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Revista Norte, que Benedito Nunes publicou juntamente com Max Martins e Orlando Costa em 1952. Apesar de terem sido publicados apenas três números, a revista contou com diversos colaboradores, como Ruy Guilherme Barata, Maria Anunciada Chaves, Machado Coelho, Paulo Plínio Abreu, Benedito Monteiro, Simão Bitar, Angelita Silva, Ápio Campos, Peter Paul Hilbert, Frederico Barata, Mário Faustino, Robert Stock e outros.

De sua lavra saíram uma centena de artigos publicados em periódicos brasileiros e estrangeiros; quase cinco dezenas de capítulos de livros; traduções, como o longo poema “Crônica”, de Saint-John Perse; ensaios publicados na forma de álbum ou de livretos (booklet), sendo três autobiográficos (“Quase um plano de aula”, “Dois ensaios e duas lembranças” e “Crônica de duas cidades – Belém e Manaus”, este último com Milton Hatoum); e 12 livros, excetuando as recentes coletâneas que reuniram textos já publicados, todos dedicados aos estudos literários e filosóficos. Dos livros, três foram escritos com intenções didáticas, tendo sido encomendados pelas respectivas editoras e com várias reedições: “Introdução à Filosofia da Arte” (1966), “Filosofia Contemporânea” (1967) e “O tempo na narrativa” (1988).

Essa obra, extensa e diversificada, que toca vários campos do conhecimento, como filosofia, literatura, artes e ciências sociais, é cada vez mais lida e valorizada. Este site tem por objetivo reunir e disponibilizar informações relevantes para os que desejam conhecê-la - e também para os que buscam dados biográficos sobre o autor, este pequeno ‘pai do tempo’, epíteto dado ao filósofo pelo poeta Ruy Barata, inspirado em personagem criado por Thomas Hardy, apresentado no livro “Judas, o obscuro”: um menino de baixa estatura, magro, pensativo e ensimesmado.

Referência

 

Nunes, Benedito. Quase um plano de aula. Belém: Universidade Federal do Pará, 2009.

Esta é uma versão modificada do texto homônimo publicado originalmente no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas em 2011.

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