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Passagens entre a Amazônia e a

Floresta Negra

 

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Há muitas formas de se começar um livro e de justificar o seu resultado. Em alguns casos, a sua unidade é circunstancial, como numa coletânea de artigos. Por vezes, a sua redação é motivada por questões prementes, cuja compreensão exige a transformação de seu objeto em objetivação compositiva. Em outras situações, a escrita decorre de uma questão invariante, de uma obsessão temática que assombra e exige a sua elaboração. Tal parece ser um modo legítimo – certamente não o único – de se acercar de “Passagem para o poético”, de Benedito Nunes.

A indicação dessa obsessão está no próprio título. Não há dúvida de que a palavra poética, seja ela encontrada na poesia propriamente dita, seja na prosa de João Guimarães Rosa, seja discutida pela filosofia, ou ainda na consideração sobre a arte em geral, não deixa de manifestar o seu caráter produtivo – poiético (1) – como a elaboração lapidar de monumentos de sentido que, antes de meramente se constituírem como estâncias visíveis de certo itinerário, apontam para a doação do que ele mesmo não é, como todo monumento aponta para a espacialidade e a disposição dos entes que a dotam de expressão. Mas, ao determinar a poesia como núcleo da empresa filosófica de Nunes, não se faz jus de modo integral à sua escrita. Não há dúvida de que o próprio poetar concerne intimamente a Nunes, mas apenas enquanto engendra no espírito humano a necessidade de realizar uma travessia, uma passagem. Por isso, não seria tanto a existência de uma multiplicidade de obras da poiesis que tal pensador tomaria como tarefa de reflexão, e sim a pergunta pelo entremeio em que nos situamos no umbral do fazer poético. Assim, a passagem não é simplesmente o meio a ser abandonado tão logo alcancemos a finalidade, como se poderia supor de um domínio da poesia, mas antes, a compreensão de que a atividade poética não é algo outro que se situar como passagem para ela mesma, como transpassado pelo dizer.

Mas “Passagem para o poético” é também uma obra sobre Martin Heidegger. Contudo, e desde as primeiras linhas já o sabemos, o dizer de Nunes sobre o filósofo da Floresta Negra é de uma matriz distinta, que não decorre simplesmente do empréstimo de um sotaque belenense à ontologia heideggeriana. Seria, antes, preciso conceber a escrita de Nunes como o que propicia de modo preciso e atento a passagem da língua alemã ao português, ou, o que significa o mesmo nesse caso, a captação da estranheza desse pensamento e dessa linguagem. Não por acaso, Nunes descreve “Ser e tempo” como “um estranho tratado” (p. 9), (2) pois, poderíamos acrescentar, é um escrito que testemunha um projeto inacabado, de linguagem incomum, organizado por uma estrutura circular interpretativa, cujo tema era recebido obrigatoriamente de modo ininteligível pelos seus leitores, visto que pressupunha nestes o esquecimento de seu sentido. Para ser bem sucedido nessa proposta, o livro de Nunes não poderia partir dos acordos interpretativos já consagrados sobre o pensamento de Heidegger, afinal, seria preciso experimentar e traduzir a sua estranheza em língua portuguesa, tarefa que não é realizada senão com um deslocamento provocado pela introdução de um estilo, em certa medida alheio ao pensador alemão, mas que não deixa de exprimir precisamente o que há de ser pensado no processo de ir ao seu encontro.

São três as partes que compõem a “Passagem...”, além de uma breve introdução: uma parte preparatória para a discussão de “Ser e tempo”, a análise propriamente dita desse livro, especialmente sob a chave interpretativa do arco temático que se estende do ser ao tempo, e um terceiro andamento que discute diversas sendas enveredadas por Heidegger após a obra seminal de 1927.

Na primeira das partes propriamente ditas, “A caminho de Ser e tempo”, encontra-se, após certa ambiência filosófica relacionada aos anos de formação de Heidegger, um excurso sobre o episódio vergonhoso da adesão desse filósofo ao nacional-socialismo. Nesse sentido, Nunes é taxativo em seu diagnóstico: “Ninguém é politicamente neutro, mesmo quando declare sê-lo. E a neutralidade ainda mais enganosa pode tornar-se quando o que está em jogo é a livre destinação ao saber das universidades” (p. 31). Do envolvimento intempestivo com a política à desilusão na constatação em todos os níveis da imposição de um processo maquínico, o pensador da Floresta Negra permaneceria para sempre marcado pelas decisões de 1933-34, polêmica que adquiriria cores ainda mais nefastas após a publicação dos “Cadernos Negros” (Schwarze Hefte) na coleção de suas obras completas. Mas já em “Passagem...”, Nunes explicitava o caráter ambíguo dessa colaboração: “Heidegger marcou a distância doutrinária que o separou do nazismo, a cujo partido, no entanto, se filiou” (p. 31); uma adesão marcada e nuançada por uma discordância filosófica que, do ponto de vista prático, se extinguia. Esse duplo aspecto leva, e o diagnóstico de Nunes é preciso nesse ponto, a um misto de admiração pelo pensador do ser aliada a uma repulsa do colaborador do nacional-socialismo, mesmo considerando o seu rompimento oficial em menos de um ano de atividade como Reitor e as passagens de seus escritos posteriores em que critica o regime nazista. “Desfeita a lenda de um Heidegger sinistro, pressuroso servidor do nazismo, que teria renegado até mesmo a velha amizade que o ligava a Husserl, permanece a maldição que o fato de haver colaborado com o regime ainda hoje faz pairar sobre sua obra” (p. 32), constata Nunes.

No trajeto preparatório a “Ser e tempo”, Nunes situa a singularidade da questão do ser, passa por uma discussão sobre o significado da fenomenologia, para reunir ambas as temáticas no caráter hermenêutico do Dasein. “Qualquer que seja o modo de existência do homem, o arco hermenêutico atravessa-o de um a outro extremo, do ôntico de uma situação particular e determinada ao ontológico a ela implícito e latente. Eis, finalmente, a condição do Dasein humano que o determina como ente: a de interpretante do ser, transcendendo-se em direção ao mundo”, observa o filósofo paraense (p. 76). Distinta de uma tarefa técnica, a interpretação deve ser apreendida como estrutura pré-teórica possibilitadora, irredutível à conceitualização categorial. Por outro lado, corresponde ao nosso ser, dois planos analíticos, “o existencial [Existenziell], pré-teórico, de que parte, e que toma por base, e o existentivo [Existenzial], que chega nos conceitos interpretativamente elaborados, e nos quais, liberados de sua aparência ou encobrimento, os fenômenos respectivos podem mostrar-se” (p. 85) (3). Os planos ontológico e ôntico não implicam uma incomunicabilidade absoluta; ao contrário, sabemos que o Dasein é justamente aquele que tem um primado ôntico-ontológico, cujo o ser está em jogo em cada um de seus comportamentos ou cujas estruturas ontológicas se concretizam historicamente. É nesse sentido que o problema da pergunta atinge uma produtividade hermenêutica inaudita na história da filosofia em “Ser e tempo”, pois ela incorpora um nível ontológico em que aquele que a realiza coloca simultaneamente a sua própria existência em discussão a cada movimento indagativo. O interpretar e o perguntar dirigem-se tanto a um quanto a outro, ao ontológico e ao ôntico, os eixos de uma “cadeia hermenêutica” (p. 86) que compõem o âmbito de uma “decifração da existência” (p. 87). Não sendo mero objeto teórico que se oferece à inspeção desinteressada do investigador, a existência implica outra forma de constituição, cuja dinâmica articula o existente humano naquilo que ele é como fáctico e possível, de modo que não pode tomar a si desvinculado da sua circunstancialidade. Decifrar a existência é algo que mobiliza o próprio ser do perguntante, do inquiridor, que não pode tomar a si mesmo como mero objeto desinteressado. Mais ainda, devido à dinamicidade de nosso projeto como ser-no-mundo, a existência não é algo estático a que podemos ter acesso e assim remontar meticulosamente os seus diversos componentes com o intuito de formar uma figura do todo; ao contrário, a relação parte-todo é preeminentemente histórica e, por isso, a existência não é algo que se conhece, mas algo de que tomamos parte interpretativamente numa tarefa sempre inconclusa de decifração, na medida em que novos aspectos e sentidos são adicionados, se retraem ou se modificam ao passo mesmo em que a existência se historiciza.

O acesso à existência por meio da pergunta, que se alarga pelo método fenomenológico, possui, segundo a nossa leitura da ênfase de Nunes, o caráter de passagem: “a pergunta que retém a relação intencional abre-se em arco no domínio originário da existência, ligando os extremos ôntico e ontológico da compreensão prévia de nós mesmos” (p. 76). O arco só aparece mediante a interrogação fenomenológica, que não toma a existência como um mero dado, mas que a apreende em inúmeras camadas de constituição, que só se revelam enquanto tal se apreendidas na doação do tempo, isto é, em sua historicidade. Em sua constante mobilidade entre os extremos desse arco, entre o acesso aos entes e a compreensão de meu próprio ser nesse envolvimento, a existência passa a ser simultaneamente o interrogante e o interrogado. “Mas só se pode aclarar essa compreensão indeterminada do ser, de que depende a elaboração da pergunta, atravessando-se o Dasein — isto é, passando-se antes pelo desencobrimento fenomenológico do ser desse ente” (p. 79), travessia que não pode se realizar sem que o ser desse ente tenha se colocado em perspectiva histórica. Sendo passagem, é na abertura ao ser do Dasein que se configura o mundo, como o envolvimento com o que é possível no ente.

Ao passar para a discussão das seções seguintes de “Ser e tempo”, Nunes apresenta nuances do problema da significação nessa obra, em sua conexão com o tema da lida cotidiana. A análise fenomenológica do utensílio (Zeug) é, sem dúvida, um dos momentos característicos da abordagem heideggeriana, cujo interesse — que muitas vezes foi apressadamente e equivocamente interpretado como a instituição da prioridade do prático frente ao teórico, embora leia-se claramente que “o contemplar é tão originariamente uma ocupação, quanto o agir possui sua visão” (SZ 69) — é mostrar que estamos sempre imersos na significatividade, sendo a porta de entrada para essa discussão a noção de “complexo referencial” (Verweisungsmannigfaltigkeit) ou remissivo. É por meio dessa noção que Heidegger rejeita que o lugar primário do sentido seja na visão descontextualizada do ente, tal como ele se apresenta em seu caráter de ser-à-vista (Vorhanden) (4), já que esse movimento implica a compreensão de vários outros elementos que se pretendem inoperantes na apreensão cognitiva do ente, mas que continuam a desempenhar um papel no âmbito pré-teórico, que nunca é desativado. Dito de outro modo, o resultado que Heidegger alcança ao final da discussão sobre o utensílio é a mostração do mundo ou, mais especificamente, a exposição de como a mundanidade — essa estrutura ontológica-existencial do Dasein — se concretiza na lida cotidiana, na medida em que o Dasein se movimenta numa relação com uma totalidade previamente compreendida, tal como o uso de cada utensílio pressupõe a apreensão significativa de outros utensílios a que refere.

A análise da relação cotidiana com os outros na forma de A gente (Das Man), apesar de breve, assinala uma importante opção de tradução. Em primeiro lugar, Das Man é uma partícula que envolve um uso de difícil correspondência para a língua portuguesa, visto que ela não possui um equivalente direto. Por exemplo, na construção “Man hat ... entschieden”, “decidiu-se que...”, não encontramos um sujeito determinado na oração, não sabemos quem de fato decidiu algo ou quantas pessoas decidiram. Ora, é justamente essa indeterminação que Heidegger coloca em jogo em sua análise da cotidianidade em “Ser e tempo”; indeterminação essa que, contudo, temos certeza de nos sentirmos parte. Dessa forma, o vocábulo a gente capta essas duas dimensões: a da indeterminação de autoria das ações e o respaldo de que a sua perspectiva representa um lugar-comum. Embora a gente seja inegavelmente bem sucedida na conjugação desses dois aspectos, essa expressão, assim como a opção da Márcia Cavalcante de Sá por impessoal, enfrenta a dificuldade de verter ao português o uso gramatical de Das Man, que, na língua portuguesa, pode ser indicada pelo uso do sufixo “-se”, como em ‘faz-se assim’, ‘diz-se assim’, ‘pensa-se assim’, ‘age-se de tal modo’. Desse modo, a estranheza característica de “Ser e tempo” em alemão reverte para uma dupla estranheza, na preservação dos deslocamentos operados pelo próprio Heidegger, mas também diante da dificuldade de adequar completamente tais movimentos à língua portuguesa e de provocar sentidos correspondentes.

Na mesma seção, Nunes traduz Fürsorge por solicitude, opção que ressalta, talvez de modo mais enfático, a relação ontológica com o outro. Se a tradução da Márcia de Sá Cavalcante opta por manter a raiz terminológica entre Besorgen, Fürsorge e Sorge (ocupação, preocupação, cura), Nunes abandona esse procedimento e opta por destacar compreensivelmente cada um deles para o português, respectivamente, como preocupação, solicitude e cuidado. O leitor da obra de Heidegger em língua portuguesa, especialmente o iniciante, dificilmente deixará de se confundir com a falta de uniformidade no vocabulário utilizado para verter os termos heideggerianos. Apesar disso, a direcionalidade intencional indicada pela solicitude é clara: trata-se de “um contínuo cuidar de outrem, que inclui tanto o intercurso indiferente quanto as formas negativas (hostilidade, aversão) e positivas (dedicação, amor) de relacionamento” (p. 97), ao passo que Besorgen se refere à lida cotidiana, ao empenho orientado pela visão circunvisiva (Umsicht) em relação a certa totalidade de utensílios.

Após uma análise das dimensões da abertura (disposição de ânimo, compreensão e discurso) e da queda (Verfallen) na linguagem, Nunes passa a explicitar a correlação entre angústia e o nada. Em um primeiro momento, ele explica como as tonalidades afetivas ou disposições de ânimo (chamadas episodicamente no início da seção VII de sentimentos) “manifestariam, de modo peculiar, o ser-no-mundo” (p. 107). O passo seguinte é discutir o conceito de angústia, mostrando sua proximidade em relação à acepção freudiana. A partir de Freud, Nunes explica que

A angústia é inseparável da expectativa diante de algo que não é determinado: a situação traumática subjacente. O perigo contra o qual a vítima de uma fobia reage angustiando-se não é real ou iminente. Pode-se então afirmar da angústia, em abono do seu caráter reativo, como descarga impulsiva condicionada à economia do aparelho psíquico, que a imprecisão e a carência do objeto lhe são inerentes (p. 109).

A indeterminação de um referente para a angústia é também característica da ontologia heideggeriana, que, entretanto, a remete à própria situação do ser-no-mundo, que se torna “infamiliar e inóspito” (p. 110). Sendo, portanto, uma disposição fundamental que nos coloca diante do ser-no-mundo enquanto tal, ou, o que diz o mesmo, diante de um acontecer (ein Geschehen) do nada no seio do ente, a angústia é o que impede que o cuidado (Sorge) seja tomado inofensivamente como uma mera estrutura categorial, como observa Nunes a partir de uma referência ao “Kant e o problema da metafísica” (p. 116).

É por meio do acontecimento da angústia que se revela claramente o círculo entre o ter sido lançado e o projetar-se constante do ser-no-mundo, na medida em que mostra o não-ser característico da existencialidade — indeterminável e inabarcável enquanto dinâmica do tempo. A angústia dá a compreender a situação fáctica do ter sido lançado e a impossibilidade de abarcar esse movimento na forma retroativa da busca de um fundamento, ao passo em que confronta o Dasein mesmo com o ser-finito. Por outro lado, o projeto adquire contornos e é potencializado pela antecipação da impossibilidade de ser, de forma que o não-ser constitutivo da existência, liberado pelo acontecimento da angústia, se finitiza como a possibilidade última, mas iminente, de não ser mais. A antecipação circular entre facticidade e projeto que caracteriza o ser para a morte autêntico é descrita por Nunes como uma “maiêutica ao revés” (p. 130), visto que não constitui reminiscência de um fundamento anterior ao próprio existir, e sim um projeto que prenuncia a possibilidade derradeira, ela mesma retroativa na significação das possibilidades que se descerram na situação concreta do Dasein. Para Nunes, “na medida em que libera o fundo de um não-ser, o fundamento do Dasein — a parturição do fim possibilitada desde o começo —, ultima a possibilidade da consciência moral” (p. 130-131).

Através do tema do ser para a morte, Heidegger contorna a via direta e derivativa de uma abordagem sobre o tempo a partir de sua concepção vulgar, já que a extrai da finitude mesma da existência. Nunes destaca em seu recenseamento sobre o problema da temporalidade — ao lado de nomes como Agostinho e Bergson — o lugar nuclear de Husserl, o pai da fenomenologia. Escreve Nunes que

O fluxo com que a temporalidade em Heidegger tem a ver é o das vivências intencionais. De certo modo ela é a intencionalidade remetida à existência e, como tal, à condição da relevância ôntico-ontológica do Dasein, que assegura o definitivo título de validade da epoché do ser da consciência, e, a fortiori, da conversão da Fenomenologia em Ontologia hermenêutica (p. 136).

Não é difícil perceber o esquema das vivências intencionais nas ekstases temporais descritas por Heidegger. Em primeiro lugar, há a ideia de que a temporalidade das vivências intencionais implica uma coordenação entre cada uma delas, “cada vivência tem uma duração, que se ordena relativamente às outras” (p. 136). Em segundo lugar, a intencionalidade que se detém com cada uma das vivências se faz acompanhar de uma intencionalidade que se volta para o fluxo total dessas vivências, uma “dupla intencionalidade” (p. 136) que fornece uma matriz de sentido, pois, “que as vivências em particular tenham uma duração, isso significa, para Husserl, quanto ao ser temporal, que cada uma é o modo pelo qual algo aparece: o tempo de aparição do que nelas se dá” (p. 136). Ora, sabemo-lo em sua definição de fenomenologia, que o motivo metodológico heideggeriano em “Ser e tempo” gira em torno de um deixar mostrar aquilo que se mostra tal como é. Ao final do percurso de “Ser e tempo”, atrela-se a dinâmica da mostração à estrutura temporal que a condiciona. A liberação da temporalidade de sua acepção vulgar, como sequência de agoras, aqui tomada como derivada, permite que a significação, em sua dupla direcionalidade, apresente-se enfim como histórico.

Condição de possibilidade da história em sentido vulgar, a estrutura ekstática do Dasein articula-se hermeneuticamente, isto é, como um todo sensível à dinâmica das partes, e vice-versa. Dessa forma, a dimensão do passado, o sido (Gewesenheit) é tomado em sua imbricação existencial. Nunes salienta o traço dinâmico do sido, pois, na medida em que ele atua sobre a compreensibilidade, o sido retrovém. Na medida em que o Dasein é um projeto lançado e abertura de possibilidades, a retroveniência recebe do advir a sua direcionalidade. Assim Nunes afirma que “a retroveniência (zurückkommen) não é uma volta ao passado, sendo o Dasein, a cada momento, o haver sido (gewesen sein) de um porvir (Zukunft) no sentido literal da palavra” (p. 133). A estrutura temporal correspondente ao cuidado mostra que essas ekstases temporais — o retrovir e o advir —, que se somam ao apresentar (Gegenwärtig), são, contudo, modalizadas de acordo com a possibilidade de sua articulação própria ou imprópria. Em todas as situações em que essas ekstases são concebidas desde a concepção vulgar de ser — como um mero “ser-à-vista” (Vorhanden) (p. 85) — ou do tempo — como sucessão linear de agoras —, elas perdem o seu caráter articulador. Assim, o comportamento em relação ao sido torna-se esquecimento (Vergessenheit), na medida em que o sido perde o seu caráter retroveniente, a atitude frente ao porvir torna-se simples expectativa (Gewartigen), sem que o possível advenha, e o apresentar (Gegenwärtigen) absolutiza o presente, pois “é o envolvimento da queda, inseparável do fáctico existir, que permite a compreensão do ‘presente’ modificado na presença imperativa dos entes, movendo-se no desfile incessante dos agoras, que marcam o tempo e absorvem a temporalidade” (p. 139).

Será por meio da experiência da finitude que se abrirá a temporalidade originária e, consequentemente, o poder-ser todo do Dasein. Em “Ser e tempo” isso decorre da decisão antecipadora, que recolhe a existência de sua dispersão cotidiana. Em termos temporais, essa nucleação ocorre no instante (Augenblick) que, diferentemente do mero apresentar (Gegenwärtigen), não abre o presente no modo de uma absorção decaída, mas o descobre na forma de uma singularidade irreplicável. O instante decisivo acolhe a retroveniência do sido, enquanto repetição ou retomada (Wiederholung), e a adveniência do porvir, como antecipação (Vorlaufen). São esses traços temporais característicos, tanto em sua possibilidade apropriativa, quanto em seu caráter decaído e impróprio, que modalizam as relações históricas. Já antecipado no tema da tradição apresentado no § 6 de “Ser e tempo”, o âmbito de relações históricas se estende desde o próprio ao impróprio, em uma miríade de combinações. Sabe-se que a relação do Dasein com a tradição não é de exterioridade, como se o Dasein pudesse ou não se relacionar com ela, mas histórica, no sentido de que “seu próprio passado — e isso significa sempre o passado de sua ‘geração’ — não segue o Dasein, mas antes, já sempre o precede” (SZ 20); de modo que o próprio compreender em certo grau se dá a partir da tradição. Do ponto de vista da cotidianidade, em que nos situamos no âmbito de uma compreensão imprópria, aquilo que é legado pela tradição acaba por encobrir suas fontes originárias, obstando, assim, um acesso histórico às suas possibilidades próprias. Por essa razão, seria preciso que a tradição fosse abordada pelo método fenomenológico, que, na perspectiva heideggeriana, além dos momentos de redução e constituição, enfatiza a necessidade da destruição, como remoção dos obstáculos e produção de abalo na sedimentação em que a tradição, em seu próprio legar, acaba por gerar. Frequentemente descrita como circular, “Ser e tempo” discute já no § 6 o problema da propriedade e impropriedade da história, e estipula claramente a repetição (Wiederholung) como o aporte metodológico do acesso autêntico à retroveniência do sido. Lê-se que “a destruição da história da ontologia” só é possível se se passa de modo confrontativo pelas “estações decisivas e fundamentais dessa história” (SZ 23). Com isso, Heidegger mostra de forma exemplar como toda compreensão envolve um sido que permanece encoberto, latente na retração de suas possibilidades próprias, sempre dependente da tarefa hermenêutica da desobstrução de sua inacessibilidade.

A exposição à história do ser

Enquanto que a primeira metade de “Passagem para o poético” consiste em uma análise densa centrada principalmente em “Ser e tempo”, o restante do livro investiga certos temas fundamentais da obra ulterior de Heidegger, transitando por uma variedade considerável de textos. É assim que Nunes oferece uma leitura do curso de 1929, “Kant e o problema da metafísica”, em que Heidegger indica alguns antecedentes da finitude do Dasein. Esses elementos já se encontrariam presentes na obra kantiana, mas não suficientemente desenvolvidos. Dentre eles, destaca-se o protagonismo da imaginação produtora descrita na primeira versão da “Crítica da Razão Pura”, em relação ao que Heidegger sugere certa proximidade com a concepção de compreensão em “Ser e tempo”. Heidegger veria na imaginação a raiz para uma noção radical da temporalidade, que o próprio Kant acaba por não explorar. Para Nunes,

A imaginação pura, confirma-o o capítulo sobre o esquematismo da “Crítica da razão pura”, é o “centro de coerência” da dedução transcendental, porquanto, unindo a sensibilidade ao entendimento, ela ratifica o maior alcance do tempo como intuição pura, à custa do qual a transcendência ganha o seu horizonte. Por essa linha interrompida da elaboração kantiana, que o filósofo não desenvolveu, mas de que deixou o traçado latente, com a “força de uma ideia aclaradora” — traçado restituível hermeneuticamente, conjugando-se as marcas do pensamento expresso na escrita filosófica que o condensou —, a imaginação, que “forma previamente o aspecto do horizonte de objetividade como tal, antes da experiência do ente”, é projetiva (p. 162).

A proposição de uma radical interpretação do Dasein através da investigação sobre sua finitude resulta num deslocamento do problema do fundamento. Para Nunes, “a questão do ser, que guia a Ontologia fundamental, exprime-se, de maneira extrema, na translação da ideia de fundamento à transcendência do Dasein” (p. 166). É desse modo que o problema da verdade se situa — já muito claramente em “Ser e tempo” — na órbita de uma reconfiguração do problema do fundamento, na medida em que a abertura ao ser (a transcendência), se coloca como a condição originária de todo o sentido.

A seguir analisa aquele que é considerado o texto que realiza a viragem — “Da essência da verdade” —, ao colocar a história do ser no centro da reflexão filosófica. Com isso, Heidegger retoma os parágrafos finais de “Ser e tempo”, em que discute a possibilitação da história a partir da historicidade do Dasein. Nessa nova etapa, no entanto, não realiza mais uma investigação ontológica por meio dos existenciais do Dasein, mas toma tematicamente a relação do Dasein com a história do ser. Para Nunes, Heidegger, “finalmente, atravessa a concepção antropológica em que se enredara, ligando a historicidade da existência ao ser, ao fundamento como origem não superada do Dasein, retida em sua temporalidade retroveniente, que o projeta para diante” (p. 210). Contudo, isso implica outra abordagem, que considerará a relação entre Dasein e verdade no modo da errância (Irre), em que se está tanto na verdade quanto na não-verdade. “A errância é o dimensionamento temporal-historial da queda”, dirá Nunes (p. 212).

É típico da meditação sobre a história do ser o envolvimento de Heidegger com a tradição que a concebeu. Em especial, ele procura nos pré-socráticos indícios de um pensamento ainda não formatado pelas balizas metafísicas que se imporiam na metafísica. Nunes enuncia o originário desses pensadores do seguinte modo: “O tempo lampeja na presença surgente, que foi a descoberta poética dos primeiros pensadores, retomada por Heidegger dos fragmentos onde se depositou” (p. 216). A physis, essa presença surgente que exprime o caráter de acontecimento da verdade, cederia lugar na história da metafísica à concepção do ser como permanência e identidade de uma substância. Ao fim e ao cabo, a metafísica — a história do esquecimento do ser — consumar-se-ia em técnica, como um desdobramento da ignorância da tipicidade do acontecer do ser.

A aproximação heideggeriana entre técnica e absoluta subjetivação reflete-se como vontade de domínio sobre todos os entes e em todos os seus aspectos. Compilados por Nunes, como sendo “a devastação da terra, a massificação, o exílio ou o apatridismo do homem moderno e a fuga dos deuses”, esses caracteres historiais marcam o “obscurecimento do mundo” (p. 240) realizado pela razão calculadora. A arte, como o que repousa sobre a poesia (Dichtung), não se mostra apenas como o que resiste à intromissão da técnica, mas também como aquilo que nos coloca em proximidade com a origem, ao exibir o acontecimento do ser simultaneamente como desocultamento e retração. Em sua recusa da abordagem estética, a interpretação heideggeriana da arte permite que esta assuma um caráter historial e fundante. Se a técnica torna impossível habitar a terra, a arte poiética é justamente o que dá lugar e permite essa habitação: “medida do homem que lhe abre o sagrado, a poesia funda o ser, fundando a dimensão do Dasein: a morada, a residência dos mortais na terra” (p. 270).

Rumo ao poético

É no epílogo que Benedito Nunes retoma a ideia diretriz de sua obra. Após apresentar textos fulcrais da transição da ontologia fundamental à produção ulterior de Heidegger, Nunes declara que

Enquanto realização da Filosofia, o acabamento da Metafísica, que se efetua como absorção do saber filosófico pelas ciências, também se concretizaria como passagem para o poético pelo pensamento liberado no dizer essencial da linguagem: a palavra dos poetas da poesia e dos pensadores-poetas, que releva da mesma ordem originária de que provém a questão do sentido do ser, desde a sua forma inicial interrogativa, de pergunta contínua, reflexiva e autoproblematizante, na Analítica do Dasein (p. 279-80).

Não deixa de causar estranheza a identificação, que Nunes percebe muito bem, de um solo comum entre a analítica do Dasein e o dizer poético. De fato, essa premissa não é trivial para muitos intérpretes. Primeiramente, deve-se atentar para a notória autoproclamada e já mencionada viragem (Kehre) que Heidegger efetuou, seguindo uma indicação interpretativa de William Richardson (1967). Muitos intérpretes enxergaram na viragem o reconhecimento do fracasso do projeto da ontologia fundamental, de tal forma que a produção filosófica do Heidegger posterior se preocuparia apenas em investigar outras vias que contornariam as supostas aporias do pensamento centrado no Dasein. Diferentemente dessa leitura, a proposta de Nunes explicita as diversas peculiaridades tanto do Heidegger transicional quanto a de sua obra posterior, mas a conecta com a validade da questão diretriz — a pergunta pelo sentido do ser — que não deixa de ressoar a partir da ontologia fundamental. No umbral do término de seu livro, Nunes deixa claro o papel nuclear do termo Dasein em sua interpretação de Heidegger:

 

 

Regressamos, assim, ao início da investigação fenomenológica, através do mesmo vocábulo — o Dasein, que demarcou o penoso caminho circular da Analítica, do mundo circundante da cotidianidade ao tempo como temporalidade. Quase impronunciado depois da viragem, é esse conceito-chave, ao qual talvez conviesse chamar de ideia, na acepção hegeliana do termo, tal a multiplicidade de relações que ele enfeixa — conceito vazado pela imagem de luz, antes de receber o nome de clareira —, que permite rebater o pensar meditativo sobre a Ontologia fundamental e entender o primeiro Heidegger por intermédio do segundo. Antecipando-se na compreensão do ser inerente ao Dasein da qual partiu o primeiro, a diferença, a verdade do ser, que se essencializa na linguagem, onde se dá a juntura do ser e do tempo como Ereignis, ao qual chegou o segundo, já predispunha a Ontologia fundamental a tornar-se um pensar poético (dichtend Denken), capaz de escutar o apelo utópico que do canto se desprende quando, na poesia, “é alto e régio o pensamento...” (p. 293).

 

 

Em segundo lugar, Nunes alude à proximidade que, todavia, é refratária a qualquer coincidência completa entre filosofia e poesia. Tal relação é explicitamente abordada, dentre vários textos de Heidegger, em “Que é isto, a filosofia?” Sabemos que o solo comum aventado nesse escrito é a linguagem, que é discutida em seu caráter de correspondência ao apelo do ser do ente. É esse apelo, que requer tanto do filósofo quanto do poeta uma elaboração, que nos coloca a serviço da linguagem. Apenas desse modo que se torna inteligível a afirmação de que “co-responder é um falar” (Heidegger, 1983, p. 23). Entretanto, o desdobramento dessa correspondência na linguagem segue trajetos distintos na poesia e na filosofia, caminhos que, apesar de dissemelhantes, partilham da mesma origem. Lê-se ao final desse escrito do pensador da Floresta Negra:

Mas pelo fato de a poesia, em comparação com o pensamento, estar de modo bem diverso e privilegiado a serviço da linguagem, nosso encontro que medita sobre a filosofia é necessariamente levado a discutir a relação entre pensar e poetar. Entre ambos, pensar e poetar, impera um oculto parentesco porque ambos, a serviço da linguagem, intervêm por ela e por ela se sacrificam. Entre ambos, entretanto, se abre ao mesmo tempo um abismo, pois “moram nas montanhas mais separadas” (Heidegger, 1983, p. 23).

Próximas em sua origem, mas distintas no modo como realizam a correspondência ao apelo do ser, filosofia e poesia estão atadas uma à outra em sua diferença (5). Não é fortuito que Nunes pense ambas na forma de uma passagem, um trânsito que não se segue linearmente da analítica do Dasein, já que se estrutura da experiência de paragens ineludíveis. Acertadamente, Nunes não se limita a reconstituir a relação entre filosofia e poesia (6); de fato, a tarefa do pensamento, que não se identifica pura e simplesmente com a filosofia, mas se coloca como a realização última desta na medida em que esta toma contato com a sua indigência imanente, é ela mesma reinterpretada pela percepção mesma dessa comunidade com a poesia. Nesse sentido, conclui o filósofo paraense,

(...) essa proximidade se exterioriza no diálogo com a poesia, de que o pensamento toma a iniciativa, ao contrair, rejeitando a especulação filosófica, a identidade de uma prática meditante, voltada à experiência da linguagem. Só esse diálogo com a poesia, dirigido pelo pensamento, é um pensar poético (dichtend Denken), por trazer-lhe a palavra do canto o despertar da lembrança do ser recalcada pela investigação especulativa no limbo do inconsciente filosófico, onde foi esquecida, e em que permanecem, como num depósito reativável, os traços da experiência originária, antes da mudança da verdade — de alétheia para omoíosis — por via da qual formou-se o curso histórico da Filosofia (p. 281).

Roberto Wu

Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina

Referências

CHAVES, Lilia Silvestre. O filósofo e o poeta. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 6, n. 2, p. 377-393, 2011.

HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

HEIDEGGER, Martin. Vorträge und Aufsätze (GA 07). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2000.

HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit (GA 02). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2018.

NUNES, Benedito. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1992.

NUNES, Benedito. Ensaios filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.

RICHARDSON, William John. Heidegger: through phenomenology to thought. The Hague: Martinus Nijhoff, 1967.

Como citar esse texto:

WU, Roberto. Passagens entre a Amazônia e a Floresta Negra. Beneditonunes.org, 21 nov. 2021. Disponível em: https://www.beneditonunes.org/roberto-wu. Acesso em: dia, mês e ano.

(1) Relativo à poiesis, que, tal como Heidegger a interpreta, se refere a tudo o que leva à passagem do que não está presente para a presença (Anwesen) na forma de um produzir (Hervorbringen). Note-se que o termo alemão Hervorbringen significa, literalmente, ‘levar à frente’ (Cf. Heidegger GA 07: 12).

(2) Nas menções de “Passagem...”, indicarei apenas a paginação.

(3) Nunes esclarece na Nota Prévia de “Passagem...” que traduz Existenzial por ‘existentivo’ (para distanciar-se do sentido adjetivo que por vezes é sugerido por existencial) e Existenziell por ‘existencial’, o que é praticamente o inverso das opções da Márcia de Sá Cavalcante, que os verte, respectivamente, por “existencial” e “existenciário”.

(4)​ Traduzido como “ser-simplesmente-dado” (Márcia de Sá Cavalcante) ou “subsistente” (Fausto Castilho).

(5) Cf. a seção I do “Epílogo” de “Passagem...”, especialmente a nota 4, p. 280.

(6) Nunes desenvolve reiteradas vezes essa relação, sob diversos enfoques, como em “Poesia e filosofia: uma transa”, publicado em “Ensaios Filosóficos” (2010); e em “Filosofia e poesia” e “A ‘proximidade’ entre filosofia e poesia”, em “Hermenêutica e Poesia” (1999). O ensaio “O filósofo e o poeta”, de Lilia Silvestre Chaves (2011), oferece valiosos subsídios para se pensar essa relação, ao explorá-la sob a ótica da amizade entre Benedito Nunes e Mário Faustino.

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